Há quem diga que a Inveja é só recalque. Só incômodo bobo. Só dor de cotovelo. Um ciúmezinho ali, uma comparaçãozinha aqui.
Mas só diz isso quem nunca sorriu por fora enquanto morria por dentro vendo o outro brilhar. Quem nunca fingiu “que bom pra você” querendo gritar “por que não eu?”. Quem nunca se sentiu diminuído ao ver alguém crescendo. Quem nunca olhou o feed e pensou “essa vida devia ser minha”. Quem nunca aplaudiu em público e amaldiçoou em silêncio.
A Inveja não parece um pecado — parece injustiça. Parece que Deus te esqueceu. Parece que a vida fez escolhas erradas. Vem disfarçada de “só tô observando”, de “sorte dele”, de “não é tudo isso, não”. Mas por dentro é espinho. É acidez. É amargura com maquiagem de ironia.
Ela mora nos bastidores. Nos parabéns forçados. Nos olhares que medem. Nas comparações que matam lentamente. Nas metas que você nem queria, mas passou a querer só porque outro conseguiu.
A Inveja não quer te motivar — quer te corroer. Ela não te move pra frente — te prende ao que o outro está vivendo. Ela é o “não basta eu vencer, o outro tem que perder”. É o incômodo de ver alguém feliz quando você não está. É a derrota que você sente mesmo quando não perdeu nada.
Quando decidi entrevistar esses pecados — essas vozes íntimas e vergonhosas — eu sabia que a Inveja seria a mais silenciosa. Porque ela não grita. Ela sussurra. Ela não explode. Ela implode.
Ela vive no “eu queria estar no lugar dele”. No “ela nem merece tanto assim”. No “se fosse comigo, eu faria melhor”. No “ninguém reconhece o que eu faço”.
Esta entrevista, então, não é só sobre ela. É sobre o que nos falta e achamos que os outros têm de sobra. Sobre o quanto esquecemos de olhar pra dentro. Sobre a dor de se comparar — e a bênção que é, um dia, parar.
Em um daqueles momentos de arrogância disfarçada de curiosidade — ou talvez de desespero bem maquiado — acabei firmando um pacto idiota com o próprio Diabo. O resultado? Sete encontros. Sete entrevistas. Uma para cada pecado capital.
Se quiser entender como, entre um café frio e um surto existencial, fui parar nessa enrascada… Leia sobre meu primeiro encontro com ele:
Fazia calor naquele dia. Calor de derreter convicção, de cozinhar pensamento, de fazer o corpo querer virar líquido só pra escorrer por alguma greta e sumir. O sol brilhava com toda a arrogância de quem nunca precisou pedir licença — bonito, sim… como um inferno recém-pintado.
Eu estava ali, parado, entre dois mundos que pareciam rir da minha cara. À esquerda, o morro — empilhado de casas tortas, vielas bêbadas de sujeira, cachorros magros e olhares que sempre perguntam “e aí, é polícia ou perdido?”. À direita, atravessando a avenida, um condomínio fechado. Grade alta, câmeras, carros que pareciam cuspir arrogância a cada ronco. Uma Porsche 911 passou e deixou no ar um perfume que cheirava a privilégio e escapismo caro.
Por um segundo, só um segundo, eu quis estar lá dentro. Numa sala gelada, pele grudada num sofá de couro legítimo, tomando suco verde sem saber o gosto. Quis aquele silêncio que custa por mês mais do que meu saldo bancário aguenta por ano.
Mas o mundo tem um senso de humor doentio. Enquanto eu esperava um amigo que já estava atrasado o suficiente pra me fazer questionar a amizade, uma sombra apareceu. Meu coração disparou. A mente congelou. Ironia do destino, talvez. O celular estava no bolso — com metade das parcelas ainda gritando por misericórdia.
— E aí, pivete. Tá caçando o quê? — a voz veio antes do cheiro. E o cheiro veio antes da forma.
— Nada, só… só de passagem. — respondi, sem coragem de encarar.
— Suave… Mas se quiser “dar um grau”…
— Valeu, irmão…
Foi aí que eu olhei. E vi.
Era eu. Mas não exatamente. Era o outro eu.
Corcunda. Pele esturricada. Olhos fundos, dentes tristes, ossos batendo palmas de fome. Um eu desidratado de esperança. Uma caricatura cruel do que eu teria virado se tivesse seguido a pior rota daquele GPS interno que todo mundo carrega, mas ninguém atualiza.
— Inveja — eu chutei. Mas acertei em cheio.
Ele sorriu. Aquele sorriso de quem nunca está satisfeito com nada, nem com o próprio sorriso. Liguei o gravador. Tinha virado meu confessionário portátil.
— Você se alimenta disso? — perguntei.
— Não. — ele respondeu, com a paciência venenosa de quem já ouviu a pergunta mil vezes. — Você se alimenta. Eu só mostro o cardápio. A inveja é o espelho. O reflexo? É todo seu.
— E por que você existe?
— Porque vocês se perderam. Porque trocaram essência por performance. Valor por validação. Porque confundem alegria com likes, amor com aprovação, e sucesso com palco iluminado.
Ele deu de ombros como quem já perdeu as contas de quantas vezes tentou explicar isso.
— Eu nasço quando o amor-próprio morre. Cresço quando você acredita que a felicidade do outro te rouba alguma coisa. Eu sou o sussurro que diz “isso devia ser seu” quando alguém vence.
— E o que você quer de mim?
— Nada que você já não me dê de bandeja. Comparações. Pequenas sabotagens. Ressentimentos enfeitados de “autocrítica”. Eu não preciso te destruir. Basta que você acredite que nunca é suficiente.
Ele tirou um baseado do bolso e acendeu com a calma de quem sabe que o fogo já começou por dentro.
— E como eu te venço?
— Parando de olhar para o lado. E começando a olhar para cima. Para dentro. Para longe. Encontrando algo maior do que sua régua quebrada.
Fez uma pausa. Traguejou. E soltou a resposta como quem solta uma bomba de fumaça:
— A cura da inveja é adoração. Mas não de si. Do que transcende. Quando você aprende a admirar sem querer possuir. A celebrar sem precisar roubar. Quando a conquista do outro vira semente, não ameaça.
— Então você tem medo da fé?
— Eu tenho pavor da fé verdadeira. — ele olhou ao redor, desconfortável pela primeira vez. — Porque fé limpa o espelho. Mostra que o outro não é rival, nem régua. Só mais um perdido tentando se encontrar. Igual a você.
— E quem já venceu você?
Ele riu. Um riso cansado, com gosto de derrota.
— Crianças. Santos. Poetas. Gente que sabe viver com pouco e agradecer por muito. A gratidão… ela me desmonta. Me derrete como sol de meio-dia numa alma vazia.
Ajeitou a camisa puída. Me olhou com um misto de pena e previsão.
— Mas tá tranquilo. Sei que logo você volta. Basta alguém ao seu lado conquistar o que você queria primeiro.
E desapareceu. Como fumaça. Ou sombra. Ou pensamento ruim que a gente finge que não pensa.
Fiquei ali parado. O sol queimando, o asfalto fervendo, o peito pesado. Pensando se aquele calor vinha mesmo do céu…
… ou se era só o fogo da inveja que, às vezes, acende por dentro e ninguém vê.
A Inveja não chega pedindo.
Chega comparando.
Não diz “pecado”. Diz “falta”.
Não te empurra pro inferno — te faz acreditar que já vive nele, enquanto os outros parecem no céu.
Com gosto de derrota disfarçada e cheiro de aplauso alheio.
Mas o sucesso do outro nunca preenche o que te falta por dentro.
E quanto mais você observa, menos enxerga a si mesmo.
A Inveja é o vazio que se veste com os desejos dos outros.
É o “por que ele e não eu?” que sussurra que Deus te esqueceu.
É o coração cheio de cálculo e a alma vazia de contentamento.
“O coração em paz dá vida ao corpo, mas a inveja apodrece os ossos.”
— Provérbios 14:30
Ela começa como admiração.
Mas cresce como comparação.
Porque quando você vive medindo o outro, esquece da medida que Deus usou pra te criar.
E um coração que vive olhando para os lados logo perde o rumo do alto.
“Pois onde há inveja e ambição egoísta, aí há confusão e toda espécie de males.”
— Tiago 3:16
A Inveja não rouba só sua alegria.
Ela rouba sua identidade.
Sua capacidade de celebrar.
Sua comunhão com o próximo — e com o propósito.
Ela te ensina a cobiçar o que Deus queria que você honrasse.
“Não cobiçarás… coisa alguma do teu próximo.”
— Êxodo 20:17
A Inveja ama cristãos que cantam sobre graça, mas se ressentem da bênção dos outros.
Que pedem portas abertas, mas se amarguram quando não são as primeiras a passar.
Que confundem justiça com favoritismo, e bênção com competição.
Por isso, se posso te deixar algo:
Desconfie do “isso devia ser meu”.
Lute contra o “eu merecia mais”.
Aprenda a admirar — sem desejar possuir.
E pratique a gratidão — não como conformismo, mas como fé.
“A piedade com contentamento é grande fonte de lucro.”
— 1 Timóteo 6:6
Porque a Inveja é corrosiva.
Mas o Espírito habita onde há gratidão.
E o Reino de Deus não é uma escada de status — é uma mesa onde todos têm lugar.
"Pecador" é um projeto pessoal de ficção que busca refletir, com temor e criatividade, sobre temas cristãos — sempre com o desejo sincero de edificar a igreja de nosso Senhor em meio às sombras de um mundo em queda.
Obrigado por caminhar comigo até aqui. Que a graça e a paz de Jesus Cristo te sustentem até a próxima quinta, ao cair do sol.
Permaneça firme. E até logo.